Pecados de Cassandra
















Por Marcelo Rubens Paiva

Cena 1: Anos 70. Os amigos de escola Marcelo, Marcus e Eduardo, todos com seus 15 anos, viajam num ônibus pela Dutra.

Marcelo lê um livro, rasga a página lida e entrega para os amigos. Eventualmente, eles comentam a narrativa. Eventualmente, algum deles se levanta para ir ao banheiro. Vai fazer justiça com as próprias mãos.

Close: A capa era de "A Gata" ou "Carne em Delírio", livros que prestavam um grande serviço a milhares de leitores, passavam de mão em mão, alimentavam a imaginação e acabavam educando uma geração.

São obras da escritora Cassandra Rios, que morreu na semana passada em São Paulo.

Cena 2: Da janela do ônibus, vê-se um Brasil conservador. Nada de revistas eróticas nas bancas. Nada de programas de TV analisando a sexualidade e seus labirintos. Nada de educação sexual nas escolas. Nada de amor livre, sexo antes do casamento, concepção. E, sim, as mulheres não sentiam prazer na relação, dizia-se.

Cena 3: Corta para o cemitério Santo Amaro, em São Paulo, março de 2002. No enterro de Cassandra Rios, na verdade Odete Rios, nascida em 1932, um parente recita uma frase dita por ela, enquanto joga terra sobre o caixão: "Se o homem escreve, ele é sábio, experiente. Se a mulher escreve, é ninfomaníaca, tarada".

Cena 4: Nas estantes das maiores livrarias do país, procura-se em vão uma obra da autora, que vendia 300 mil exemplares por ano à sua época.
Também não há referências sobre ela em sites de livrarias. Encontra-se apenas um livro, que amarela num sebo, mas tem e teve lugar reservado na memória de muitos -como o cantor Cazuza e a escritora Fernanda Young.

Contexto
Como dita os manuais da literatura comparada, para entender Cassandra Rios é preciso entender sua época e ambiente.

Não havia imagens de sexo, a não ser em livros de medicina legal. No Brasil pré-contracultura, taras individuais não eram debatidas. O estranho era considerado desvio a ser combatido pelo Estado, com a censura.

A exibição de seios só era permitida em documentários sobre índios. "Amaral Neto, o Repórter" serviu para muitos adolescentes descobrirem o que havia escondido numa mulher.

Cassandra falava às claras sobre o prazer feminino. Talvez por isso tenha sido uma das personalidades mais censuradas.

Tratava-se de uma mulher escrevendo sobre tesão de mulher, numa sociedade cuja predominância religiosa afirmava que a mulher apenas se deitava com um homem para gerar filhos de Deus.

Seus livros surpreendiam. Cassandra rivalizava com uma outra autora erótica e sua contemporânea, Adelaide Carraro, assim como Hemingway rivalizou com Scott Fitzgerald.

Enquanto Cassandra tinha um estilo mais ousado, extrovertido, Adelaide era linear, contida. Em Cassandra, há empresários corruptos, que fazem despachos em terreiros de umbanda.

Cassandra já no título era direta, como, por exemplo, "A Volúpia do Pecado", de 1948, seu livro de estréia, que a transformou numa das autoras mais vendidas da história da literatura brasileira.

Ela o escreveu com 16 anos. Fazia uma literatura assumidamente popular. Eram livros baratos. Havia desenhos provocantes nas capas: moças oferecidas em poses sutilmente sensuais.

Nas poucas entrevistas que deu, ela dizia que, no fundo, era uma simples dona-de-casa conservadora, que suas narrativas fluíam sem controle e que ela mesma ficava enrubescida com aquelas cenas mais quentes.

Chegou a escrever um livro "sério", "MezzAmaro", uma autobiografia que não fala de sexo, com 400 páginas. Chegou a ter o livro "A Paranóica" adaptado para o cinema, sobre uma filha que descobre que seu pai é falso e quer apenas roubar a grana da família. Na tela, o livro virou "Ariella", revelando a atriz Nicole Puzzi.

Em muitas faculdades brasileiras, pesquisadores deveriam estar estudando Cassandra Rios. Foi uma precursora. Sua importância não será esquecida. Nem a libido de suas personagens.

Download do livro Carne em Delírio 

Andy Warhol


"Devagar com a louça: conheci o verdadeiro
Rei do Pop (pop-art) há alguns anos, e seu nome era Marcel Duchamp.
Para mim, Andy era a Rainha do Pop..."
Ultra Violet in "Famous For 15 Minutes"


Esqueça as imagens ultra-coloridas de Marilyn Monroe ou mesmo as gigantescas latas das sopas Campbell’s. É pouco comentado, mas o excêntrico artista plástico norte-americano, Andy Warhol (1928-1987), fez dezenas de filmes experimentais, entre curtas e longas-metragens, registros de shows e de performances artísticas. Com raros DVDs disponíveis no Brasil, apenas 6 títulos lançados pela Magnus Opus, a obra cinematográfica de Warhol merece atenção. Primeiro pela ousadia estilística, que se aproxima radicalmente, em sua medula estética, das artes plásticas (como nos screen tests). Depois pela perversão de sua câmera intimista que erotiza o cotidiano e os personagens ‘reais’ - como na tríade - Flesh (1968), Trash (1970) e Heat (1972) – produzida em parceria com Paul Morrissey.

O cinema de Warhol faz jus ao espírito underground que rondava seu ateliê, o estúdio Factory. Lá ele promovia as mais ousadas festas e experimentos estéticos. Transitavam artistas, estilos, artes e sexualidades. Era comum, numa tarde qualquer, encontrar por lá os velvets Lou Reed e Nico, ou mesmo personalidades como Baby Jane Holzer, Edie Sedgwick, Joe Dalessandro, Dennis Hopper, Mick Jagger, e ainda loverboys, prostitutas e transeuntes curiosos.





































Inserido na contracultura dos anos 60, o espaço logo se tornou uma fábrica de arte underground que produzia desde fotografias em série até filminhos curtos, os intitulados screen tests. Eles captavam inúmeras faces de personalidades, como se fossem retratos-vivos. Filmados em P&B, os takes revelam plasticidade pela aparente imobilidade dos retratados. Pois, apesar do rosto-vivo-morto, podemos perceber traços emotivos dos fotografados: inibição, sorrisos tímidos (como o de Susan Sontag) e irreverência, como algumas mulheres se descabelando ou mesmo Salvador Dalí de ponta-cabeça. Os screen tests, além de embaralharem artes plásticas, cinema, performance e vídeo-arte, são interessantes experiências estéticas sensoriais.

De sua fase cinematográfica, também podemos ver um longo plano-seqüência do Empire State Building, visto como uma grande personalidade ‘arquitetônica’, fálica, filmada em sua ereção constante, do amanhecer ao pôr-do-sol. Há ainda short films, produzidos entre 1963 e 1965, que erotizam ações comuns: Blow Job (foto) flagra em poucos minutos apenas o rosto de um rapaz que tem prazer sexual; Sleep observa à distância um jovem dormindo em sua rara movimentação sonífera; Kiss (foto acima) mostra um quadro-vivo com cenas de casais se beijando; entre outros da série, como Mario Banana e Eat.

Warhol aprimorou o fetiche estético do ‘corpo em performance’ em longas-metragens produzidos após 1965: My Hustler (1965), The Velvet Underground and Nico (1966), Chelsea Girls (1966), Bike Boy (1967) e Lonesome Cowboys (1969). Com tramas banais e linguagem naturalista, o cineasta capturou, como num flash de Polaroid, o zeitgeist de sua época, em filmes voyeuristas, undergrounds, improvisados, erotizados, e com certa liberdade estética de dar inveja em qualquer estreante do Dogma 95.






Bom-crioulo, de Adolfo Caminha: estratégias para uma narrativa homoerótica por Alfredo Fressia

"Sua amizade ao grumete nascera, de resto, como
nascem todas as grandes afeições, inesperadamente, sem
precedentes de espécie alguma, no momento fatal em
que seus olhos se fitaram pela primeira vez. Esse movimento
indefinível que acomete ao mesmo tempo duas
naturezas de sexo contrários, determinando o desejo
fisiológico da posse mútua, essa atração animal que faz
o homem escravo da mulher e que em todas a espécies
impulsiona o macho para a fêmea, sentiu-a Bom-Crioulo
irresistivelmente ao cruzar a vista pela primeira
vez com o grumetezinho. Nunca experimentara semelhante
cousa, nunca homem algum ou mulher produzira-
lhe tão esquisita impressão, desde que se conhecia!
Entretanto, o certo é que o pequeno, uma criança de
quinze anos, abalara toda a sua alma, dominando-a,
escravizando-a logo, naquele mesmo instante, como a
força magnética de um imã."


























Diante de um romance como Bom-Crioulo (1895), de Adolfo Caminha (Aracati, Ceará, 29 de maio de
1867-Rio de Janeiro, 1o. de janeiro de 1897), resulta quase inevitável a reflexão sobre o aleatório destino crítico de toda obra literária. Primeiro romance de tema totalmente homoerótico da literatura brasileira e inscrito na história literária sob o rótulo "naturalista", o texto tinha, por seu tema, antecedentes nacionais na mesma escola naturalista: os episódios de homossexualidade masculina em O Ateneu (1888), de Raúl Pompéia, e feminina, em O Cortiço (1890), de Aluísio Azevedo. No entanto, em Bom-Crioulo o homoerotismo masculino é a "única" paixão exposta, o motivo sobre o qual se estrutura todo o relato, e desde o qual se criam, de fato, todas as personagens. Como, além do mais, os protagonistas desse amor vestem os uniformes da Marinha nacional, a crítica de seu tempo, e do presente século até a década de 70, reagiu com perplexidade, e não tanto pelo recurso à mera detração, improvável diante de um texto que reúne demasiadas qualidades, mas sim pelo puro e simples silenciar-se.

É sabido que a patologização dos comportamentos homoeróticos alcançou sua maior intensidade no "século obscuro", o período que poderia ser inscrito entre as datas de 1869 (invenção da palavra "homossexualidade" e momento privilegiado do discurso repressivo) e 1968 ("liberação" dos costumes). Não resulta então casual que, desmontada uma boa parte dos dispositivos ideológicos desse "século", a crítica haja "redescoberto" este romance que, se nunca foi uma peça arqueológica da literatura latino-americana, agora se revela como um esplêndido documento de estratégias estéticas destinadas à abordagem de um tema em seu momento "tabu", e sem dúvida "perigoso". Como para compensar o silêncio crítico que cercou a obra, os últimos anos viram multiplicar-se os estudos específicos, as reedições e as traduções. (Em espanhol, existe pelo menos desde 1987 a edição de Ed. Posada, México, que manteve o mesmo título do original. Em inglês existe como Bom-Crioulo: The Black Man and the Cabin Boy, trad. de E. A. Lacey, San Francisco, Gay Sunshine Press. Com introdução de R. Howes.)

Chamando "Adolfo Caminha", o leitor encontra na Internet centenas de "sites", que incluem livrarias onde comprá-lo, teses universitárias, repertórios de literatura gay. Como, além do mais, Caminha tem sido autor freqüentemente obrigatório nos programas escolares dos últimos anos, suas edições não somente são facilmente encontradas como também vêm quase sempre anotadas e precedidas de pedagógicos prefácios (o que pode facilitar a leitura "internacional", alheia ao menos em parte ao locus exclusivamente brasileiro da obra e suas possíveis maneiras de acesso).

Por ocasião do centenário da morte do autor, multiplicaram-se também os perfis biográficos de Caminha e, sem dúvida, a tentação de descobrir o que possa haver de autobiográfico em sua obra. Adolfo Caminha foi efetivamente oficial da Marinha imperial, formado na escola naval do Rio de Janeiro, onde vivia desde 1883. Além do mais, em sua breve existência, Caminha protagonizou dois "escândalos" reveladores de seu carisma e também de sua incapacidade de conformar-se diante de qualquer status quo. Em 1884, como cadete naval, ousou discursar em certa cerimônia diante do Imperador Pedro II, expondo suas idéias republicanas e anti-escravagistas. O Imperador e a conservadora Marinha, de maioria monárquica, foram então indulgentes com ele. Não o seriam no outro episódio "escandaloso" de sua vida. Em 1888, já oficial, Camiha havia retornado a Fortaleza, a capital de seu estado natal, e ali se uniu à esposa de um oficial do exército, que lhe daria duas filhas. A proporção que adquiriu este episódio na provinciana Fortaleza da época está à altura da indignação que o futuro narrador manifestará diante da hipocrisia social. Sobrevivendo como funcionário público, Caminha retorna ao Rio em 1892, onde se dedicará ao jornalismo, à crítica literária (notas das quais resultará o livro Cartas literárias, de 1895) e à redação daqueles que seriam seus três romances (A Normalista, 1893; Bom-Crioulo, 1895; e Tentação, 1896), enquanto lutava contra a tuberculose que segaria sua vida aos 29 anos.

A audácia de publicar um livro homoerótico em 1895 custou a Caminha algo mais que o silêncio crítico sobre a obra. A audácia supôs também um trabalho de verdadeiro artífice do estilo, o que acabou garantindo a modernidade do texto. O narrador não tenta, em momento algum, tornar o tema opaco (um recurso freqüente na literatura propriamente gay, a do "século obscuro"). Nada mais explícito que o desejo desses homens, cujos atos de amor são narrados com sensualidade e com detalhes bem mais próprios da atual literatura postgay (sobre o deslinde postgay, ver meu artigo Acerca da literatura gay, publicado nesta revista eletrônica), a pouco econômica narrativa homoerótica dos últimos trinta anos. Caminha não se impõe os "limites" temáticos que a bienséance de 1895 podia exigir. O trâmite que negocia a própria existência desta narrativa na época radica no uso, meramente convencional, da retórica naturalista, de larga influência no Brasil, e na qual Caminha declara inscrever-se. Porém é paradoxal que, de fato, nenhum de seus três relatos logre o naturalismo que o autor predica. (Em A Normalista Caminha toca a mesma inverossimilhança). No caso de Bom-Crioulo, trata-se melhor de um recurso de sobrevivência. A saber, o autor, ao mesmo tempo em que afeta uma retórica naturalista, desautoriza, ao longo do relato, cada um dos princípios da escola de Médan. Emile Zola e seu grupo propunham privilegiar as "condições fisiológicas", a influência do meio social ("os meios", dizia Zola) como determinantes do ser humano. A psicologia ficava subordinada à "fisiologia", que inclui a hereditariedade e alguns componentes do que se denominará o darwinismo racial.

Com efeito, quando no primeiro dos 12 capítulos do relato, se apresenta o marinheiro Amaro (apodado Bom-Crioulo, um equívoco apelido), com seu corpo "colossal" e um "formidável sistema de músculos", o narrador menciona "a morbidez patológica de toda uma geração decadente e enervada". A essa altura o leitor imagina de boa fé que enfrentará um estudo "científico-naturalista". No entanto, a obra já não voltará ao tema da "decadência" racial e a menção terá sido uma mera concessão retórica ao "naturalismo" em voga para poder, em troca, apresentar um universo sado-masoquista. O romance se abre, de fato, com a tortura infligida diante de todos os tripulantes por um oficial e seu assistente a Bom-Crioulo e outros dos marinheiros (por delitos que incluem a masturbação). O personagem de Amaro é criado sobre a beleza e a dor (mas também sobre a obscura beleza da dor): "Bom-Crioulo tinha despido a camisa de algodão, e, nu da cintura pra cima, numa riquíssima exibição de músculos, os seios muito salientes, as espáduas negras reluzentes, um sulco profundo e liso de alto a baixo no dorso, nem sequer gemia, como se estivesse a receber o mais leve dos castigos".









































Por outro lado, a "fisiologia" e as condições sociais dos três personagens que fazem evoluir a ação, são
demasiado diversas: Bom-Crioulo é um escravo "fugido", refugiado na Marinha; Aleixo, o outro marinheiro, é um jovem e loiro adolescente do sul do Brasil, filho de pescadores catarinenses que se alista na Marinha, e no navio conhecerá a inesperada paixão que Bom-Crioulo lhe devota. Em terra, a portuguesa Carolina, é quase uma meretriz, gorda, hedonista e covarde. Não devia escapar a Caminha que os meios sociais e raciais concernidos eram demasiado heterogêneos para cumprir com as receitas do habitual romance à thèse naturalista.

Caminha construiu em Bom-Crioulo um romance de forte conteúdo erótico (não "pornográfico", segundo o equívoco deslinde que se costuma fazer, e ainda se no Brasil, que chegava ao século XX, já existisse literatura homoerótica "pornográfica") [1], e é evidente que tampouco lhe escapava a "gravidade" do tema, que o autor aborda com detalhes mais de connaisseur que de "cientista". O que fica de sua narração (e o que a torna "moderna") é a sensualidade da matéria narrada, e não os restos dessa estratégia "científica" que inclui, de vez em quando, e quando Caminha não se distrai, nomes como "uranismo", "anomalia", "desejo de macho torturado pela carnalidade grega". Um bom exemplo do trâmite narrativo de Caminha se encontra na sensual descrição da primeira relação de Bom-Crioulo e Aleixo, ainda no barco, quando "uma sensação de ventura infinita espalhava-se-lhe em todo o corpo"]. No momento da penetração, o relato é violentamente interrompido por este comentário estratégico que encerra o capítulo: "E consumou-se o delito contra a natureza".

Em Bom-Crioulo a própria sucessão dos segmentos narrativos é mais própria do romance erótico que do "naturalismo". Caminha, um homem de forte militância política, concentra o relato, no entanto, na paixão, como corresponde à estética do erotismo, e o "meio" torna-se demasiado descuidado para um romance que retoricamente se adscreve à escola naturalista. A paixão, na estética literária, é sempre "universal", e, com efeito, no fechado universo de Bom-Crioulo o leitor teria que estar muito atento para ler os signos políticos do "meio", a ponto de vacilar se deve situá-lo no final do Império (de fato ali se situa) ou já na República, depois de 1889. Esta vocação "universal" do relato, própria da estética erótica, também se manifesta na "universalidade" do homoerotismo apresentado: quase todos os personagens, de marinheiros a oficiais, praticam o homoerotismo, ou o praticaram, ou discursam sobre ele com uma benevolência inesperada [2].

Finalmente, a ação se concentra em apenas três personagens, em total desmedro do conjunto social, incluída aí a micro-sociedade do navio e dos embarcadouros do Rio. Mais ainda, com a relativa exceção de Bom-Crioulo (o único que trata de entender sua falta de interesse pelo sexo feminino, os anos em que, desorientado, se manteve virgem), os personagens são rápidos e de desembaraçada "psicologia", como se somente a paixão aclarasse tudo. Aleixo, como personagem, evolui apenas da ingenuidade ao oportunismo. Instalados na capital, na pensão da Carolina, Aleixo terá uma relação paródica, quase burlesca com ela. Bom-Crioulo, outra vez castigado pelos oficiais por participar de uma altercação ne rua, acaba no hospital da Marinha, criando um rápido vazio na vida de Aleixo, espaço que será preenchido por Carolina, um personagem criado com ironia: "Carola Bunda" (sic), uma "mulher-homem", excessiva em tamanho e cuja avidez sensual o jovem Aleixo satisfaz mal e por mero oportunismo.

Apesar do trâmite falsamente "naturalista" que o leitor desmonta hoje com facilidade, e apesar também da sensualidade e simpatia com que é criado o protagonista, Caminha tampouco se apresenta como especialmente "abandeirado" do homoerotismo (uma atitude sem dúvida militante, e mais própria da literatura postgay). Por mais que o erotismo do único personagem feminino toque o grotesco, a homossexualidade masculina de Bom-Crioulo não é per se de signo positivo. Sua prática não "melhora" (ainda que tampouco "piore") as personagens. Assim, quem comanda a última tortura física do protagonista, que o conduzirá ao hospital, será um oficial conhecido por sua afeição pelo amor "grego".

Além do mais, o romance tem um fim trágico: traído, e movido pela vingança, Bom-Crioulo mata Aleixo. É interessante que o desenlace arquitetado pelo autor não tenda ao murcho moralismo, à parábola moralizante da ideologia de sua época. O crime, mais do que pela evolução das "psicologias", se justifica por uma rede muito mais fina que o narrador cria durante todo o relato: as relações de poder que, essas sim, parecem preocupar ao político Caminha, e que em Bom-Crioulo, por sua estética erótica, desembocam em um universo sado-masoquista ao qual o narrador outorga toda sua parafernália estética (castigos, chicotes, instrumentos fálicos, isolamento, ambientes sombrios, fardas, suspensão do peso da "realidade", em particular social, mas também do tempo, passado ou futuro): "E não era somente questão de possuir o grumete, de gozá-lo como outrora (…) era questão de gozá-lo, maltratando-o, vendo-o sofrer, ouvindo-o gemer… Não, não era somente o gozo comum, a sensação ordinária (…) era o prazer brutal, doloroso, fora de todas as leis, de todas as normas…". Se Caminha foi um indignado com a sociedade de seu tempo (incluindo a mediocridade provinciana de Fortaleza, a frivolidade da capital e, mais ainda, a rebeldia diante das convenções sociais), Bom-Crioulo foi a obra estética privilegiada para a expressão de sua desconformidade. É o que torna este romance erótico um permanente jogo sincrônico de códigos, um objeto sempre a ponto de desorientar o leitor, capaz de desconcertar também a crítica, e seguir instigando-a um (longo) século depois da sua criação.


NOTAS
1 Ver Além do carnaval, a homossexualidade masculina no Brasil do século XX, de James N. Green. São Paulo, UNESP, 2000.
2 Às críticas negativas, Caminha respondeu no artigo Um livro condenado na revista literária A Nova Revista, vol. 2, Rio de Janeiro, fevereiro de 1886. Fala de "um verdadeiro escândalo ou ato inquisitorial da crítica, talvez o maior escândalo do ano passado". Utiliza ali a palavra homossexualismo, quando ataca a hipocrisia dos que elogiavam Flaubert, Zola, Maupassant, Eça de Queiroz, mas condenavam Bom-Crioulo. É outro bom exemplo de sua estratégia: "Qual é mais pernicioso: o Bom-Crioulo em que se estuda e condena o homossexualismo, ou essas páginas que andam pregando por aí, em tom filosófico, a dissolução da família, o concubinato, o amor livre e toda espécie de imoralidade social?" Recorde-se, de passo, que Caminha se mostra, neste artigo, atualizado em suas leituras (médicas, no caso) sobre o tema homossexual. Menciona o Dr. Ambroise Tardieu (Étude médico-légale sur les attentats aux moeurs, 1857), Dr. Albert Moll (Les perversions de l'instinct génital, 1893) e Richard von Krafft-Ebing.


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Poema da Eternidade sem Vísceras

Na última lua eu odiava as montanhas
minha memória quebrada não pode receber

o amor

eu tomava sopa aguardando meus amigos desordeiros

no outro lado da noite

este é o meu estranho emprego este mês

outro tempo quando o velho Gide se despachava para a África

meu coração era sólido eu dançava

eu assistia uma guerra de chapéus e as brancas

lacerações dos garotos no Ibirapuera angélico

terreno vazio onde eu mastigava tabletes de

chocolate branco

no próximo instante eu vi árvores e aeroplanos com bigodes

e lágrimas de Ouro

no Ibirapuera esta noite eu perdi minha solidão

ROBERTO PIVA TRANSFERIDO PARA REPARO DE VÍSCERAS

todos os meus sonhos são reais oh milagres epifanias

do crânio e do amor sem salvação que eu sabia presos

no topo da minha alma

meu esqueleto brilhava na escuridão

repleto de drogas

eu nunca estou satisfeito e ando um incorrigível demônio

lunático com os dez dedos ruídos tamborilando num campo

magnético

memória do arsênio que eu dei a uma pomba

os olhos cinzentos do céu meu culto Totem espiritual



Roberto Piva

Reformando as Utopias por José Sette


Estou chocado com a eleição e com a pseudo-ética que formaliza a democracia capitalista brasileira.
As aberrações que podemos observar na prática eleitoreira tem se mostrado incomensurável na avaliação dos candidatos concorrentes e seus partidos aproveitadores. O povo influenciado pela mídia, noticiários e programas de rádio e tevê, continua não sabendo em quem votar. Tiririca, Romário, Garotinho, Wagner Monte, são os campeões de voto, segundo as pesquisas. Antes, Clodovil, Maluf, Enéas, dominavam o cenário midiático sem nenhum benefício de suas atuações ao processo político de libertação do nosso povo.

Eles todos são os representantes do espírito brasileiro da esculhambação, da pilhéria e do mal dizer. Aliais o nosso povo quando não pode consertar ou transformar, ele tenta esculhambar, anarquizar. É o sentimento de revolta que passa na cabeça de todos nós, quando a outra opção que se tem nem é sempre o que se deseja de fato. O voto inútil. O fenômeno Cacareco faz parte disso. Acho um direito de o povo elegê-los, com todos os votos de quem quer para quem vai esculhambar o que não está direito.

Mas nisso tudo o que não é direito são os eleitores carregarem nas legendas dos partidos que apóiam os despreparados a possibilidade de com os Cacarecos seguirem todo o zoológico.
Quanto a esculhambação, meu pai me dizia que em 1939, ele assistia nos cine jornais da época, o poder da Alemanha no desfile sincronizado, harmonioso, perfeito, representados no balé bélico dos soldados nazistas com seus uniformes cortados na medida, suas calças impecáveis caindo em uma mesma posição sobre suas botas brilhando, era assustador. Mas quando um corte na imagem do cine jornal apresentava o contraponto no desfile dos seus seguidores no Brasil, onde centenas de integralistas comandados por Plínio Salgado marchavam na Avenida Rio Branco, sem nenhum sincronismo no movimento, praticamente andavam, conversavam uns com os outros, usavam diferentes sapatos esportivos, camisas verdes e calça de qualquer cor, o povo brasileiro gozador conseguia esculhambar até a rigidez do nacional socialismo alemão.



Assim o Brasil, que é feito pela mistura de todas as raças, um país sério dentro de uma desordem incontrolável, precisa de reformas urgentes e inovadoras. Parafraseando Tancredo Neves, em depoimento ao meu filme Liberdade: “brasileiro radical não existe, se ele é brasileiro, ele não é radical, mesmo ele tendo nascido no Brasil”. No mesmo filme Luis Carlos Prestes, em uma entrevista, nos diz que se um dia soldados estrangeiros invadirem o nosso território, esse povo dolente, se bem informado, vai se unir radicalmente, com coragem na inaudita luta, sem trégua, para expulsar o invasor...



É preciso mostrar a todos que nós já estamos sendo invadidos e escravizados e ninguém fala sobre isso. Essa dualidade nacional precisa ser entendida. Quando um candidato se deixa mais radical em suas opiniões ele não é entendido pelo eleitor. Mas o eleitor precisa saber o quanto invadido está sua mente, seu pensamento, seus direitos, sua vida, por forças de uma cultura estrangeiras que de maneiras claras e objetivas dominam grande parte do nosso território, tanto físico quanto mental.



Uma reforma política, se um dia existir, tem que se inovadora, tem de ser única. A verdadeira democracia tem de acabar com todos os partidos políticos. Com todo radicalismo burocráticos que dele advém.Todo brasileiro pode ser candidato, todo eleitor pode ser votado. Assim Tiririca vai com milhões de voto ser eleito, mas vai sozinho. Garotinho e Wagner Monte também.



Um partido político engessa a expressão política pois são sempre dominados por panelinhas e conchavos. Ele não elege ninguém e recebe todas as glórias e legendas? É preciso acabar com isso. Para mim, as eleições, depois de uma reforma política simples e radical, seriam assim:



1. No primeiro mês se elege os vereadores e os prefeitos. No segundo mês o governador e os deputados estaduais. No terceiro mês elege-se o presidente e os deputados federais Extingue-se a eleição para o Senado.

2. Só pode concorrer para deputado estadual quem já foi votado, eleito e cumpriu todo o mandato de vereador. Só pode concorrer para Governador quem já foi votado, eleito e cumpriu todo mandato de Prefeito. Só pode concorrer a presidência quem já foi votado, eleito e cumpriu todo mandato de governador. Não teremos candidatos à vice. Se um eleito faltar, elege-se outro.

3. Todos os meios de comunicação oferecerão a todos os candidatos o mesmo tempo de difusão de suas campanhas política. Acaba-se com a papelada e impressos de candidatos. Campanha limpa só pelos meios de comunicação.

4. Ao Senado caberá a inteligência dos estados brasileiros com dois representantes escolhidos por um colegiado a ser criado composto por representantes comprovados de expressão de sua cultura política, jurídica e artística. Ao Senado caberá legitimar as leis estabelecidas na Câmara e analisar e aprovar ou não os atos do executivo.

5. O Executivo só poderá nomear seus auxiliares; Ministros e Secretários, entre aqueles que foram eleitos deputados estaduais, federais ou se forem senadores.

6. Um Senador pode concorrer a qualquer cargo eletivo, bastando que ele cumpra todo o seu mandato no Senado.

7. Todos os mandados serão de oito anos, sem direito a reeleição.

Como podemos ver com essa reforma acabaremos com a falácia que se tornou as agremiações políticas neste país. Quando se fala em Brizola não se pensa PDT. Quando se fala em Prestes, não se pensa PCB, em Getúlio, não se pensa PTB, FHC em PSDB e nem no Serra, Lula também não pensa PT e Dilma nem se fala. Os outros se confundem no radicalismo boçal do conservadorismo e das utopias ideológicas seguindo regras pré-estabelecidas como se pertencesse a uma igreja dogmática onde a fé derruba montanhas.


Meu voto não mudaria nessa nova conjuntura. Dilma é a melhor que se apresenta. Lula foi o melhor que se apresentou, depois de Brizola. Hoje as opções para o governo do Rio e de Minas, onde eu voto, é mesmo de fazer rir... Vamos democratizar de verdade, fazendo de imediato as reformas necessárias no sistema de governo e na representação política. Reformas que deveriam defender de imediato os anseios de libertação do povo brasileiro.

Guevara sem Charuto

Uma música ótima feita em homenagem à atriz cubana Phedra de Córdoba por Luiz Pinheiro...


A Balada de Nan Goldin














































Um olho roxo, um machucado em forma de coração. Pessoas bebendo, cheirando cocaína, casais na cama logo após manterem relação sexual. Detalhes de banheiros, quartos, cozinhas. Os snapshots de tom confessional e pessimista da americana Nan Goldin cunharam um estilo inconfundível e suas imagens influenciaram fortemente mais de uma geração de fotógrafos. Para o júri do Prêmio Hasselblad de Fotografia de 2007, Goldin é uma das mais influentes artistas de nosso tempo.

Questões de gênero, privacidade, pudor e tabus sociais são fortemente evidenciados em suas fotos, porém, para Goldin, a premissa do seu trabalho não é pensar sobre comportamento, sobre drogas ou sobre os desajustados do mundo. Sua câmera, como ela mesma já disse, é uma extensão do seu braço e, sua fotografia, a necessidade angustiante de reter o fluxo da própria vida. Acima de tudo, a fotografia, para Goldin, é uma atividade protetora, um ato de preservação.

Nascida em 1953, em Washington, numa família judia de classe média, desde cedo teve problemas em casa. Quando tinha 11 anos, sua irmã cometeu suicídio. Aos 14, deixou os pais e foi viver entre amigos, a quem chamava de “família estendida”. Preocupada com o fato de que as memórias de sua irmã começavam a se apagar, ela começou a tirar fotos das pessoas em torno de si, para que não desaparecessem da sua mente: "Meu trabalho é principalmente sobre a memória. É muito importante para mim que eu possa tirar fotos de todos aqueles que estão próximos a mim.”

Em 1978, já em Nova York, ela mergulha em um estilo de vida destrutivo de drogas e álcool e sua câmera registra longas noitadas e relacionamentos abusivos. Na década de 80 essas fotografias transformam-se na série The Ballad of Sexual Dependency – que, inclusive, poderá ser vista nesta edição da Bienal de São Paulo, entre 25 de setembro e 12 de dezembro.

Sobre este trabalho, ela afirma: "Não é sobre o underground nem sobre viciados e prostitutas. É sobre relacionamentos entre homens e mulheres e por que são tão difíceis. Amor vem acompanhado de violência e dor. É sempre um embate entre a autonomia e a dependência."

Nesse diário visual Goldin expõe laços íntimos, angústias e fragilidades das suas relações. Uma vida doméstica entre amores e amizades, mas envolta em tédio e solidão. “O maior significado deste trabalho é como você pode se tornar sexualmente viciado em alguém e isso não ter absolutamente nada a ver com amor”.

O relacionamento com o namorado Brian aparece em algumas fotos. Numa delas, Nan and Brian in bed, ele está nu fumando um cigarro enquanto Goldin aparece deitada atrás dele, com uma expressão de vulnerabilidade e solidão. Ela também registrou a violência do namorado na foto Nan one month after being battered.

Depois de realizadas estas fotos, a autora entendeu um outro aspecto da sua obra: “É sobre a política de gênero. O que é ser mulher, o que é ser homem, quais os seus papéis sociais. As crianças são educadas para serem inseridas nesses papéis e posteriormente isso se transforma em violência”.

Aos 5 anos de idade, Goldin decidiu que não havia nada que seus irmãos homens pudessem fazer que ela não podia. "Um amigo meu me disse que eu nasci com um coração feminista".

A cena pós-punk, gays, travestis, usuários de drogas estiveram incialmente no foco do seu trabalho. No início dos anos 90, Goldin deixa Nova York para viver em Berlim, onde cuidou de um amigo à beira da morte. Sua câmera passa a registrar o avanço da Aids que levou vários dos seus amigos. Há dez anos em Paris - sem falar francês - a fotógrafa vive praticamente isolada. "Não amo mais ninguém. Sou eu e poucos amigos."

Iniciado há 30 anos, o trabalho de Nan Goldin desconstrói os princípios da “boa foto”, virando do avesso as regras, princípios e modos de composição e enquadramento, além de subverter o que é “fotografável” trazendo à tona todas as cores e sombras de um cotidiano de anti-heróis, expondo as vísceras de uma sociedade sem esperança ou salvação.

“Se eu quero tirar uma foto, eu não me importo com a luz. Não me importo com imagens perfeitas. O que me importa é a relação com as pessoas”, afirmou.

Criticada por glamourizar o submundo e as drogas, a fotógrafa respondeu que acha abominável a idéia de “heroin chic” e seu uso para vender roupas e perfumes. Como as novas e diferentes formas de convivência humana são justamente as mais sujeitas à vigilância social, talvez por isso suas imagens tenham despertado tanto interesse e polêmica.

Ao eliminar as fronteiras entre público e privado, a fotógrafa escancara as entranhas de uma vida desgraçadamente arruinada.

Talvez a cultura do sensacionalismo e ainda do reality show dos anos 2000 tenham aumentado a identificação e o reconhecimento ao trabalho de Goldin.

Hoje, suas imagens estão nas principais coleções de arte contemporânea do mundo. No site de leilões artnet um exemplar de uma foto de Goldin custa entre U$ 3 mil e U$ 5 mil. Mas as cifras podem ser maiores, como é o caso de Kathleen at the Bowery Bar, N.Y.C. (1995), leiloada em maio último por U$ 15 mil, pela Bukowskis de Estocolmo, numa tiragem de 15. Ou Joanna laughing, L'Hotel, Paris (1999), vendida pela Phillips de Pury & Company de Londres há exato um ano, por U$ 25,7 mil, em tiragem de 3.