A desbundada poesia erótico-mística de Waldo Motta por Erly Vieira Jr.





Era 1994, eu tinha dezessete anos, havia acabado de entrar pra faculdade e começava a freqüentar o meio cultural capixaba. Naquele tempo, a Fafi era o “point intelectual” de Vitória e Waldo Motta ainda grafava seu nome como “Valdo Motta”, mas eu nunca tinha ouvido falar dele antes. Em algum daqueles happy hours culturais, bastante comuns nos saudosos anos 90, alguns poetas locais realizaram um recital no anfiteatro da Fafi, por ocasião do encerramento de uma oficina que o Chacal tinha realizado na cidade poucos dias antes. Um deles, baixinho, magrinho e com cara de poucos amigos, pegou o microfone, e se apresentou: “Meu nome é Edi-valdo Motta. Edi, pra quem não sabe, em gíria gay, significa”... e lá foi ele explicar pra platéia que edi era um singelo sinônimo para o impronunciável e familiar orifício anal.

Na mesa em que eu estava, todo mundo já alto por conta de horas de bebedeira, não teve um que não caiu na gargalhada. Aí ele começou: “No cu/ de Exu/ a luz.” Risinhos por toda a platéia. “Pronto, a bicha endoidou!”, foi o que eu pensei. Ainda mais depois que ele encarnou o pastor evangélico, para entoar um texto de nome “Encantamento”: “Ó Deus serpentecostal/ que habitai os montes gêmeos,/ e fizestes do meu cu/ o trono do vosso reino,/ santo, santo, santo espírito/ que, em amor, nos forjais,/ felai-me com vossas línguas,/ atiçai-me o vosso fogo,/ daí-me as graças do gozo/ das delícias que guardais/ no paraíso do corpo”.

E aí o risinho do começo da apresentação foi se tornando cada vez mais amarelo. E todo mundo foi percebendo que o negócio ali era seríssimo. “A poesia é a minha /sacrossanta escritura,/ cruzada evangélica/ que deflagro deste púlpito./ Só ela me salvará da guela do abismo./ Já não digo como ponte/ que me religue/ a algum distante céu,/ mas como pinguela mesmo,/ elo entre alheios eus”, dizia um poema de nome “Religião”. Pronto. Antes do recital terminar, eu já havia me tornado admirador incondicional do cara. Meses depois, matriculei-me numa de suas oficinas literárias. Foi uma das melhores coisas que fiz na vida. Das Oficinas Poiesis, ainda iriam surgir alguns dos nomes mais barulhentos da geração de poetas capixabas nos anos 90 e 00, mas isso já é outra história.

Até porque a história que quero contar aqui é a de Waldo Motta (nascido em 1959 na cidadezinha de Boa Esperança, situada no norte do Espírito Santo), cuja poesia situa-se no cruzamento entre o homoerotismo e uma leitura das Sagradas Escrituras, de uma maneira tão revolucionária e estarrecedora que proporcionou ao escritor muito mais barulho que qualquer poeta local fez no cenário nacional. E isso sem precisar de sair da ilha para poder ter algum reconhecimento nacional (condição que, infelizmente, ainda hoje é meio que regra para quem quer tentar uma carreira iniciada nas capitais fora do eixo hegemônico deste país).

E é Waldo que nos apresenta sua tão peculiar visão do cruzamento entre sagrado e erotismo na poesia, como podemos confirmar no prefácio de sua coletânea Transpaixão, publicada em 1999:

“Mas a doutrina que prego não é invenção, é uma descoberta: acredito piamente que encontrei a palavra perdida, secreta, impronunciável, e que nada me impede de anunciá-la, e nem a ninguém, apesar de Borges e do Imperador Amarelo. (...) Fodam-se todos: o sagrado é o sacro, e o grande segredo é que em nosso rabo está o Santo dos santos, o Céu dos céus. Por conseguinte, a solução de todos os problemas. E o povo brasileiro, com seus 200 e tantos sinônimos de bunda, parece intuir esta verdade maior.”

Isso já dá uma boa idéia do que o leitor pode esperar de cada um dos livros de Waldo. Ele afirma ser a sua poesia um “drama espiritual”, uma reflexão existencial, fruto de um processo de auto-conhecimento e maturidade. Essa trajetória se inicia em 1981, ainda no norte do Espírito Santo, com a publicação de quatro livros em tiragens independente, de poesia desbocada, recheada de gírias e episódios afrontosa e assumidamente gays, em franca consonância com o escracho da poesia marginal setentista — esses trabalhos seriam reunidos na coletânea Eis o homem, publicada pela FCAA/Ufes em 1987, numa espécie de balanço dessa primeira fase da carreira.

Poiezen, publicado pela Massao Ohno três anos depois, já aponta uma série de reflexões metapoéticas que, junto a Waw (palavra hebraica que significa ponte, travessia), marcariam uma transição para a epifania erótico-mística de Bundo, livro de 1995 que revelou Waldo (na época ainda grafado com “V”) no cenário nacional. A publicação de Bundo e outros poemas (reunindo os então inéditos Waw e Bundo), pela Editora da Unicamp, em 1996, logo atraiu os olhares de diversos figurões das letras brasileiras para a irreverência solene do poeta capixaba.

Isso é o que podemos comprovar neste depoimento Waldo, que transcrevo da gravação que fiz de sua recente participação numa mesa-redonda sobre poesia, realizada em Vitória, no Centro Cultural Up:

“Sempre fui considerado um poeta indecente, obsceno. Isto porque eu sempre misturei baixo calão com alto calão. Palavras difíceis, eruditas com palavras sujas, enlameadas, gosmentas. E não só por esta mistura de registros, também pela temática. Eu sempre me assumi como homossexual, não é uma palavra da qual eu goste, mas não tenho outra. E sempre fui muito místico. Logo, nas minhas pesquisas, estudos, aquilo que para muita gente não tem nada a ver eu descobri que tem muito a ver. Sexualidade com religião.. O mais chocante de tudo é que nas minhas pesquisas quanto mais eu procuro Deus, o sagrado, eu sempre acabo chegando aos 'países baixos', a uma geografia muito interessante do corpo humano. (...) Desde o início da história humana, existem tabus. E o que eu descobri nas minhas pesquisas e que reflete na minha poesia, é que a sexualidade é tanto a perdição quanto a salvação da humanidade”.

Apesar de recusar o rótulo de “autor gay” que a então dominante tendência dos “estudos culturais” tentou lhe conceder na década de 90, Waldo foi tema de artigos, resenhas e textos diversos de Iumna Simon, João Silvério Trevisan, Célia Pedrosa, José Celso Martinez Corrêa e Ítalo Moriconi, entre outros. Sem contar que foi incluído pela Heloísa Buarque de Holanda na antologia Esses poetas (1998), que reunia a nata da geração 90 da poesia brasileira.

Waldo ainda participou de programas como o Writer-in-residence, da Universidade da Califórnia, em Berkeley, além da bolsa concedida pelo Departamento de Cultura de Munique, em 2001, que lhe permitiu concluir o poema anagramático Recanto, que se tornou sua mais recente publicação, em 2002.

E qual seria a receita para a poesia de Waldo? Para ele, a poesia tem que fazer jus à origem do termo (do grego poiesis) — descoberta, invenção, criação de realidades através do verbo: “Mas também descoberta de realidades e mundos ignorados, outras Américas e terras prometidas”, complementa, explicando que, para obter tais resultados, ele faz uso de recursos pouco usuais como interpretação de sonhos, numerologia, cabala, anagrama, estudos etimológicos de línguas como o hebraico, o yorubá e o tupi-guarani, além, é claro, dos textos sagrados oriundos de diversas tradições místico-religiosas. A isso, Waldo dá o nome de “método paraclético”, um método apocalíptico, escatológico, que pretende discutir exatamente o “fim das coisas”. Afinal, poesia, para ele é também vaticínio, profecia, sendo o poeta, dessa forma, a “antena da raça” de que tanto falava Ezra Pound.

Além de Pound, Waldo também me faz lembrar um outro nome fundamental do século XX: Jean Genet. Não só pela proximidade com uma certa marginalidade, mas também por uma opção extremamente sincera por viver de literatura (e Waldo leva isso tão ao pé da letra, ao ponto de residir, até o final da década de 90, num minúsculo porão no centro de Vitória, rodeado de livros e escritos, exatamente o período em que sua literatura mais freqüentou os cadernos culturais dos principais jornais de circulação nacional). No prefácio de Bundo, Waldo escreve:

“Minha poesia é uma síntese de meu projeto de vida, uma aventura em busca da Verdade, intuída como a ciência da restauração da condição divina (...). Não quero apenas escrever, mas também ser o que escrevo. Daí o entusiasmo e o tom solene, porque é algo sério; daí o caráter pregacional, mesmo que o meu discurso esteja ainda em construção.”

É ainda nesse texto que ele afirma propor em Bundo o cruzamento entre o “amor que não diz seu nome” e o “nome impronunciável” ou “palavra secreta”, tão presente nos textos esotéricos e freqüentemente associada à poesia. Uma mistura explosiva, não? “Eu quero ser lido, entendido, debatido, assimilado, apedrejado, amado, babado, beijado por todo mundo. Mas não posso negar que sou perverso, perversejador. Eu sou perigo, sou um grande problema. Porque sou muito radical em tudo que faço. Arte, poesia é uma questão para mim de vida e morte”, afirma o escritor.
Para Waldo, a salvação não deixa de ser “uma senda erótica”, como comprovam versos como os do poema “As brincadeiras sérias”: “Só pode amar quem moeu/ seu eu na amorosa mó,/ e desse pó renasceu”. Convenhamos: afirmar isso, numa época em que boa parte da literatura brasileira tem tão pouco a dizer, já é mais do que suficiente para iniciar um grande debate, não acham?

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